Ir para o conteúdo principal
Fórum da Iniciativa de Cidadania Europeia

A Iniciativa de Cidadania Europeia: diversificar os debates políticos a nível europeu

Atualizado em: 07 September 2020

Com a entrada em vigor do Tratado de Lisboa em 2009, um instrumento algo ambíguo entrou na arena política e jurídica da União Europeia — a Iniciativa de Cidadania Europeia (ICE). O que foi introduzido como o primeiro instrumento transnacional de democracia participativa suscitou, inicialmente, grandes esperanças de tornar a União mais acessível. Após pouco menos de uma década de funcionamento, o consenso parece ser o de que o instrumento não poderia corresponder a essas expectativas. Em primeiro lugar, tal parece dever-se à tensão inerente entre, por um lado, o encargo organizacional extremamente elevado para os organizadores de ICE e, por outro, o resultado muito limitado de uma ICE, mesmo quando bem-sucedida. A presente publicação do blogue pretende demonstrar que parte desta tensão — o caráter não vinculativo da ICE — já está enraizada na posição do instrumento nos próprios Tratados. Embora esta conclusão, enquanto tal, não supere a tensão persistente, fornece, pelo menos, uma luz mais positiva sobre a eficácia global da ICE.

ECI letter

A iniciativa de cidadania europeia permite que um milhão de cidadãos, de pelo menos um quarto dos Estados-Membros, convidem a Comissão Europeia, no âmbito das suas atribuições, a apresentar uma proposta adequada sobre matérias em que os cidadãos considerem necessário um ato jurídico da União para aplicar os Tratados. ORegulamento (UE) 2019/788, que, a partir de 1 de janeiro de 2020, revogou o Regulamento (UE) n.º 211/2011, estabelece o procedimento concreto e as condições exigidas para uma ICE. O procedimento consiste em três etapas — (1) registo, (2) recolha de apoio e, em última análise, (3) apresentação à Comissão, para exame, de uma iniciativa bem-sucedida, definida como uma iniciativa que atinge o limiar de um milhão de apoiantes. Desde o início, este procedimento e as condições que lhe estão associadas depararam-se com problemas. Os primeiros anos da ICE podem caracterizar-se pela dificuldade em determinar os requisitos de registo que os organizadores devem cumprir. Com a recente revisão legislativa do Regulamento (UE) n.º 211/2011 e a jurisprudência do TJUE, estes requisitos tornaram-se ligeiramente mais flexíveis — transferindo o debate para a questão talvez mais premente subjacente à iniciativa de cidadania — nomeadamente, quais as ações que a Comissão deve ou deve tomar na sequência de uma iniciativa apresentada com êxito. Num acórdão recente proferido pela Grande Secção do Tribunal de Justiça, esta questão foi finalmente respondida. No acórdão Puppinck, o Tribunal constatou que a Comissão não é juridicamente obrigada a dar seguimento a uma iniciativa bem-sucedida. Embora, do ponto de vista jurídico, o acórdão seja geralmente apreciado na medida em que respeita estritamente a letra da lei, de um ponto de vista político, não podemos deixar de reconhecer que o Tribunal de Justiça não conseguiu resolver a tensão entre o encargo organizacional extremamente elevado para os organizadores e o resultado muito limitado de uma ICE. À luz da recente revisão do quadro jurídico da ICE, que perdeu igualmente a oportunidade de resolver esta tensão central, parece que, de momento, a ICE está determinada a continuar a ser um instrumento de democracia participativa que ainda não atingiu o seu potencial ótimo.

Num contributo recente sobre este fórum, Luis Bouza García argumentou que esta conclusão pessimista poderia dever-se a uma interpretação errada da ICE como um «instrumento capaz de introduzir novas questões no ciclo de elaboração das políticas». Sugere que, se se considerasse a ICE como uma «oportunidade para tornar os debates políticos mais diversificados e controversos [...], é impossível subestimar os efeitos que já teve na abertura de oportunidades de participação na elaboração das políticas da UE».

É precisamente este argumento que pode ser confirmado pela análise da posição da ICE nos próprios Tratados. A ICE baseia-se no artigo 11.º, n.º 4, TUE, lido em conjugação com o artigo 24.º, n.º 1, do TFUE. A primeira disposição faz parte do título II relativo às disposições relativas aos princípios democráticos. O artigo 11.º ocupa uma posição especial neste título, na medida em que constitui em grande medida os princípios da boa governação da Comissão, que esta já tinha proposto em 2001. No seu Livro Branco de 2001, a Comissão propôs-se abrir «o processo de elaboração de políticas para que mais pessoas e organizações participem na elaboração e execução das políticas da UE [promovendo] uma maior abertura, responsabilização e responsabilidade de todos os envolvidos». É neste contexto que o artigo 11.º, n.º 1, do TUE insta as instituições a criarem canais de comunicação que permitam aos cidadãos e às associações representativas «dar a conhecer e trocar publicamente os seus pontos de vista sobre todos os domínios de ação da União». O artigo 11.º, n.º 2, TUE acrescenta a necessidade de as instituições «manterem um diálogo aberto, transparente e regular com as associações representativas e a sociedade civil», que é parcialmente concretizado e parcialmente complementado pelo artigo 11.º, n.º 3, TUE, na medida em que exige que a Comissão «proceda a amplas consultas com as partes interessadas». No entanto, de um modo geral, estas disposições «não são concebidas como [...] direitos subjetivos oponíveis»para os cidadãos. Em vez disso,«o tipo de direitos regulados veicula uma abordagem muito centrada no fornecimento de orientações para o comportamento das instituições e menos na capacitação dos cidadãos». Isto significa que o artigo 11.º TUE deve ser visto como uma obrigação geral para as instituições — e, em particular, a Comissão — de ouvirem opiniões e pontos de vista diferentes, em vez de uma obrigação de seguir qualquer um destes pontos de vista. Se for entendida neste contexto, pode argumentar-se que também a ICE, tal como estabelecida no artigo 11.º, n.º 4, TUE, se dirige à Comissão em termos de uma obrigação«de analisar seriamente e de participar numa avaliação das propostas de uma ICE bem-sucedida, e de o fazer publicamente e sobescrutínio público», e não aos cidadãos, em termos de lhes conferir o direito de que a sua iniciativa«se transforme numaproposta formal». Embora uma leitura isolada do artigo 11.º, n.º 4, TUE possa, à primeira vista, sugerir o contrário, vista no contexto do artigo 11.º TUE no seu conjunto, a ICE pode, na prática, servir antes de mais outro instrumento não vinculativo destinado a assegurar uma participação efetiva.

O artigo 24.º, n.º 1, do TFUE, que serve de base jurídica para a adoção do Regulamento ICE, parece seguir uma lógica semelhante. O artigo 24.º do TFUE faz parte da Parte II sobre a não discriminação e a cidadania da União e prevê quatro direitos políticos associados à cidadania da União: o direito de petição ao Parlamento, o direito de recorrer ao Provedor de Justiça, o direito de escrever às instituições e organismos da União em qualquer língua da UE e a ICE. Estes direitos permitem aos cidadãos participar na vida democrática da União, tal como previsto no artigo 10.º, n.º 3, TUE. Embora estes possam claramente ser entendidos como direitos concedidos aos cidadãos, de um modo mais geral devem ser encarados como instrumentos que «garantam que a democracia representativa a nível da UE é eficaz e, mais importante ainda, legítima».

Neste sentido, parece que a ICE deve ser interpretada como um outro meio de participação dos cidadãos, mas nenhum deles alteraria o monopólio legislativo da Comissão. Tal como o direito de petição ao Parlamento e os princípios de boa governação da Comissão,a ICE cria um mecanismo institucional para canalizar o contributo político dos cidadãos para as instituições, que são e continuam a ser responsáveis pelo processo legislativo. A participação dos cidadãos, embora constitua indubitavelmente um valor em si mesmo, neste quadro mais vasto, parece ser concebida como um mecanismo de legitimação e de definição de orientações para o comportamento das instituições.

Neste contexto, é difícil negar que a ICE teve êxito a este nível. Abriu claramente outra via para a participação dos cidadãos, permitiu ouvir vozes diferentes e controversas em Bruxelas, dando assim à Comissão um novo contributo para a sua capacidade de definição da agenda. É verdade que, até à data, em alguns casos, o seguimento dado pela Comissão às ICE bem-sucedidas não correspondeu inteiramente às expectativas dos organizadores em termos de propostas políticas. No entanto, tal como foi desenvolvido anteriormente, as propostas políticas formais não são o principal objetivo da ICE. Em vez disso, a ICE visa promover a participação dos cidadãos no processo democrático da União. Como salientou o advogado-geral M. Bobek, o valor acrescentado da iniciativa de cidadania europeia reside, por conseguinte, na promoção do debate público; (II) maior visibilidade para determinados tópicos ou preocupações; acesso privilegiado às instituições da UE, permitindo que essas preocupações sejam apresentadas de forma sólida; e iv) o direito a uma resposta institucional fundamentada que facilite o controlo público e político"— valores que foram incontestavelmente promovidos nos últimos oito anos.

Isto não significa, evidentemente, que a ICE, na sua forma atual, seja um instrumento perfeito de democracia participativa. É inegável que a redução dos encargos organizacionais para os organizadores permitiria uma participação ainda mais ampla dos cidadãos e aumentaria ainda mais o valor acrescentado da ICE. Tendo em conta a recente revisão do Regulamento ICE, é, no entanto, pouco provável que o quadro legislativo volte a ser revisto em breve. Por conseguinte, embora talvez não tenha atingido o seu potencial ótimo enquanto instrumento de democracia participativa, o impacto atual da ICE corresponde à sua posição nos Tratados. Nesse sentido, a Iniciativa de Cidadania Europeia não deve ser subestimada em termos de diversificação dos debates políticos a nível europeu, bem como de obrigar as instituições, e em especial a Comissão, a escutar seriamente o contributo político de, pelo menos, um milhão de cidadãos de, pelo menos, um quarto dos Estados-Membros.

Jasmin Hiry

Participantes

Jasmin Hiry

Jasmin Hiry é investigador de doutoramento no Departamento de Direito da Universidade do Luxemburgo. A sua investigação centra-se nos direitos de iniciativa na União Europeia. É titular de uma LL.B. em Direito Europeu e de uma LL.M. em Direito Internacional da Universidade de Maastricht, onde trabalhou como professora no Departamento de Direito Público antes de frequentar o seu doutoramento.

Pode entrar em contacto com ela no Fórum da Iniciativa de Cidadania Europeia ou clicar aqui!

Deixar um comentário

Para poder adicionar comentários, tem de se autenticar ou registar.